segunda-feira, 28 de novembro de 2011

IDEIAS, PALAVRAS, HUMORES, SUSPIROS E MEMÓRIAS



Gerana Damulakis

Bula Pro Nobis é o título da mais recente reunião de poemas de Fernando da Rocha Peres, com ilustrações de Mário Cravo Jr., apresentação de Carlos Nelson Coutinho, lançado pela Solisluna Editora, composto por três divisões: Suspensio, Infusion e Potio.

Descrito o livro e expondo a concordância no que tange à necessidade de adjetivar, “Tudo é preciso/ adjetivar (para o bem,/ para o mal) da natureza”, “Nada pode dizer/ sem adjetivar!”, posso usar o adjetivo excelente para indicar a impressão da minha leitura.

Se a poesia não é remédio, pois que não salva, tampouco cura, pelo menos traz encantamento, independente de como venha (ou como se tome), seja em estado de suspensão, infusão ou, tal um xarope, como poção.

Sempre afeito a atentar no tanto que há de enfermiço no ser humano – e que por isso mesmo nos torna humanos – seja na alma, seja no corpo, como certa febre terçã, ainda assim o poeta não é derrotista, pois há esperança e amor, principalmente amor, nos seus versos. E a esperança é daquelas próprias aos que não desdenham a religião, quando mais não fosse pela fé cega, que seja por uma certa perplexidade diante da história religiosa. Tal como um evangelista, os versos do poema “Entrevista” dão conta de um diálogo divino. Encantador!

Em “Alegoria VIII” está: “Aprendiz de um Pessoa,/ amante de uma Florbela”. Vou mais longe: Fernando faz parte da linhagem de Bandeira e Drummond. E a literatura sendo, como é, uma arte, então é também um imenso diálogo, daí ouso dizer que certos tons, que certos versos cantam como cantam os de CDA e MB. E não seria para menos, porque os versos de Bula Pro Nobis trazem ironia e lirismo. Fernando da Rocha Peres sabe usar essas duas ferramentas da arte, ferramentas caras e de difícil manejo, já que é preciso justamente arte para saber lidar com elas utilizando destreza, na medida exata, na dose certa. E nosso poeta, conhecedor de infusões, suspensões e poção, entende a química necessária.

Há poemas no livro que me fazem suspirar, vou elencar aqueles que ressoaram no lado esquerdo do meu peito. Destaco por empatia imediata os poemas: “Deshumor”. O aperto na alma causado pelo último terceto de “Sinal”. E ainda: “Mesmo”, “Assim”, “Verbos”, “Entrevista”, “Página”, “Ambíguo”, “A Tigela”, “Sahrãzãd”.

E agora versos que foram lidos e relidos, pois uma vez seria pouco, tal a atração que exercem.

Em  “Recado”: “Três ou quatro poemas/ bastam para desistir,/ se desço ao abismo de Dante./ A lição infernal queima devaneios.”

Em “Passos”, para as mães argentinas: “Maria bem sabe a cruz/ que sofreu, ao ver uma vida/ pregada nos pés e mãos”. Murilo Mendes ficaria com inveja.

No poema “Busca”: “Harmonia e linguagem:/ dupla viaviagem/ na pauta dos iluminados.”

E como Drummond cantou Bandeira, Fernando faz homenagem justa a Florisvaldo Mattos, nos seus setenta anos, com “Canários”.

Com “Maruja”, “(...) a poesia torna-se/ urgente para atiçar e abrir colheitas.”

 E em “Idiotias”: “Voltar e revoltar os olhos/ para a Terra onde vivemos/ e deixar o Universo com Deus:/ eis a lição dos poetas e loucos!”

Belos, belos os versos: “O amor é sentimento guardável,/ hoje, pois a vida não cabe exposições/ de um longo beijo que foi, se tudo é desnada.”, em “Confissões I”.

E a construção dos versos: “A poesia descabe, despontua,/ desliza: a costureira jovem e solteira,/ faz o pesponto e a bainha do manto.”, em “Escrita”.

Fiquei repetindo este terceto de “Passagem I”: “Aturdido estou, neste acordar de veraneios,/ e busco entender o código dos cantos mudos,/ delirantes, anunciados, idos em dezembros.”

 Concordei e pensei no belo achado em “Cru”: “O tempo é biográfico”.

O poema “Ao Poeta” traz como primeiro verso de cada estrofe o primeiro verso do famoso poema de Álvares de Azevedo – “Se eu morresse amanhã, viria ao menos/ Fechar meus olhos minha triste irmã;/ Minha mãe de saudades morreria/ Se eu morresse amanhã!”-   enquanto o poema “Lento” também gerou um suspiro: “Ah! A saudável ondulação/ da vida gota a gota”.

Com “Libitina” me emocionei muito: “A sempre esperada/ nos acompanha na vida/ e nada anuncia/ do seu diário e agenda/ que pode ser de sol/ e sustos, chuviscos até,/ mas requer um lençol/ branco, áspero e limpo/ de linho cru, igual ao deserto,/ para a viagem e o encontro”.

Por fim, vou reproduzir na íntegra um poema curto, mas que valeu a água de lágrimas. Realmente, me tocou bastante:

PÁGINA

Talvez o velho/ entenderia o filho:

mas hoje é tarde, e nada

ecoa além de lembranças.



O tempo já era, a vida idem.

Ele morreu, Octávio, tão jovem!...

Eu sobrevivo sua ausência.



Este é um grande livro de poemas. Fernando da Rocha Peres escreveu em versos que refletem o quanto podemos ficar abismados diante da vida e seu caminho andado, além de estupefatos, sempre e sempre, por ela continuar existindo (ela, aquela que “nos acompanha e nada anuncia do seu diário e agenda” – é espetacular este poema “Libitina”).

Adjetivei. Enfatizo: excelente!








domingo, 27 de novembro de 2011

JANE AUSTEN E SHAKESPEARE

Gerana Damulakis

Não sou fanática por cinema; melhor, não tenho paciência para assistir o que está pronto, o que não me proporciona margens para a minha imaginação. Mas os filmes em cima da obra de Jane Austen são espetaculares. Se estou zapeando pelos mais de cem canais e encontro os filmes Orgulho e Preconceito, ou Razão e Sensibilidade, então paro tudo e assisto de novo. Acabei de rever Razão e Sensibilidade. É antológico aquele instante quando Marianne e Willoughby descobrem que o "Soneto 116", de William Shakespeare, é o preferido de ambos. Começam a declamar. No livro, esse momento está no capítulo X, quando também somos informados sobre o quanto o casal gosta de falar sobre literatura.                                      


SONETO 116
                          William Shakespeare

De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera
Ou se vacila ao mínimo temor.
Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante
Cujo valor se ignora, lá na altura.
Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfanje não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma, para a eternidade.
     Se isto é falso, e que é falso alguém provou,
     Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.

Tradução de Bárbara Heliodora
Ilustração: O Baile da cidade, obra de Auguste Renoir. Óleo sobre tela, 1883. Museu D'orsay, Paris.

domingo, 20 de novembro de 2011

BELEZAS


O binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo.
Álvaro de Campos

Álvaro de Campos, "Poesias de Álvaro de Campos",
in Obra Poética de Fernando Pessoa (Nova Aguilar)

Ilustração:
Ἀφροδίτη τῆς Μήλου
Entre 130 e 100 a.c., Louvre Museum.

Um dos casos do Binômio de Newton:

terça-feira, 15 de novembro de 2011

POESIA E MATEMÁTICA

Gerana Damulakis

Foi o poeta Sidney Wanderley que informou: "Gerana, leia a poeta Wislawa Szymborska". A Companhia das Letras lançou um livro com os poemas da vencedora do Nobel de Literatura 1996. É hora de compartilhar.

PI

           Wislawa Szymborska


O admirável número pi:
três vírgula um quatro um.
Todos os dígitos seguintes são apenas o começo,
cinco nove dois porque ele nunca termina.
Não se pode capturá-lo seis cinco três cinco com um olhar,
oito nove com o cálculo,
sete nove ou com a imaginação,
nem mesmo três dois três oito comparando-o de brincadeira
quatro seis com qualquer outra coisa
dois seis quatro três deste mundo.
A cobra mais comprida do planeta se estende por alguns metros e acaba.
Também são assim, embora mais longas, as serpentes das fábulas.
O cortejo de algarismos do número pi
alcança o final da página e não se detém.
Avança, percorre a mesa, o ar, marcha
sobre o muro, uma folha, um ninho de pássaro, nuvens, e chega ao céu,
até perder-se na insondável imensidão.
A cauda do cometa é minúscula como a de um rato!
Como é frágil um raio de estrela, que se curva em qualquer espaço!
E aqui dois três quinze trezentos dezenove
meu número de telefone o número de tua camisa
o ano mil novecentos e setenta e três sexto andar
o número de habitantes sessenta e cinco centavos
a medida da cintura dois dedos uma charada um código,
no qual voa e canta descuidado um sabiá!
Por favor, mantenham-se calmos, senhoras e senhores,
céus e terra passarão
mas não o número pi, nunca, jamais.
Ele continua com seu extraordinário cinco,
seu refinado oito,
seu nunca derradeiro sete,
empurrando, arf, sempre empurrando a preguiçosa
eternidade.

Tradução: Carlos Machado