sábado, 21 de fevereiro de 2009

FESTAS PAPA-LARES

Luiz Britto

As festas populares, na Bahia, pelo seu gigantismo e absurdo, acabaram passando de festas populares para festas papa-lares. Importunam moradores, desrespeitam direitos constituídos, invadem propriedades, criam transtornos variados, tornam privadas as áreas públicas, tornam-se exemplos insuportáveis de poluição sonora e ambiental — e isso para gáudio de alguns, lucros astronômicos de uns poucos, e a ganância da Prefeitura, sempre falida e sempre pronta pra novos saques. Ao invés de se portar como o fiel da balança, um elemento confiável e regulador, justo, soberano, guardião da lei e da ordem, dos direitos dos seus súditos, mostra-se na sua face mais adversa e cruel. A de criadora e fomentadora de males, a permitir um verdadeiro exército de invasão, a ocupação maciça e atrabiliária de boa parte da cidade, com prejuízos e aborrecimentos para os mais fracos e indefesos.
De pequenas e limitadas festas de pescadores, ingênuas devoções populares, manifestações razoáveis de regozijo carnavalesco, chegamos aos mastodontes dos tempos atuais. Ainda há pouco tempo nada menos que 70 trios elétricos faziam fila para participar da Festa do Bonfim — ou seja, infernizar uma imensa área populacional em volta da igreja, doa a quem doer. E isso foi se repetindo na Pituba, Rio Vermelho, Itapoan. Todas as antigas e ingênuas devoções populares, católicas ou do candomblé, ganharam um vulto grotesco de festa profana, exploradas pela mídia, pelas agências de turismo, hotéis, distribuidoras de cerveja, donos de trios elétricos, bandas, chancelas oficiais, demagogia dos políticos & quejandos.
Nenhuma festa popular, porém, ganhou o gigantismo do Carnaval. Nunca os lucros foram maiores, e também nunca foi maior o incômodo a terceiros. Nem todo mundo é rico, tem casa de campo, parentes no interior, residências de veraneio. Nem todo mundo quer sair ou pode sair do seu canto. E, no entanto, tem que aturar — se mora na Barra — nada menos que 7 dias de folia, zoada, transtorno. Se há alguém doente, não há como sair de casa. Não há como uma ambulância chegar a certas ruas. A zoada ensurdecedora, de imensos Boeings levantando vôo, desses trios elétricos, está aí, a dois passos de sua casa, a dois passos do Hospital Espanhol.
Antes, já houve uns exames mentirosos, umas multinhas ridículas para os infratores, uma tentativa canhestra de se regular a altura do som dos trios elétricos. Depois, isso caiu por terra. O dinheiro, a ganância, sempre falam mais alto. Nossa Prefeitura nanica acabou desistindo do seu papel ridículo, deixou a água rolar. Seja o que Deus quiser. A velha lei da Bahia: os incomodados que se mudem. Quem não agüentar, fuja, vá pra longe.
Os passeios estão tomados, as ruas, avenidas, hotéis cheios, vem gente do interior, de todas as periferias, navios e aviões estão chegando, despejando mais e mais carnavalescos. A excitação vai ser grande. Segundo os cânones da Bahia, festa é sinônimo de zoada. Se não há zoada, bastante zoada, a maior zoada possível e imaginável, não há alegria e nem felicidade. E, então, tome zoada e tome bagunça — o nosso lema eterno, a “ordem e progresso” de nossa bandeira particular, a bandeira que rege esse pequeno burgo. Salvador ou, melhor, a Barra.
Mas, quem quer sambar, sambe — mas quem não quer? Não teria direito a uma indenização, por ser forçado a abandonar seu lar, contratar seguranças e caseiros? Isso não se pensa. E aí está o outro lado, e perverso, da moeda.
A irresponsabilidade civil da Prefeitura, dos que se locupletam com o esbulho dos direitos alheios, direitos sagrados de bem-estar, conforto e segurança, vilipendiados nesses 7 dias de guerra civil não-declarada, que é o Carnaval da Bahia.
Quem duvidar, venha assistir.


Demais crônicas de Luiz Britto no arquivo Crônicas do site http://www.bahiapress.com.br/

A BOMBA


Flamarion Silva


Raimundo Reis, pescador natural de Barcelos do Sul, tinha 34 anos, dois filhos que moravam com a mãe, um pai velho, Sr. Pissica, e, principalmente, tinha a mania de soltar bomba. Eu disse bomba, não bombinha de São João. Bomba, bombona de matar peixe.
Todos sabiam ser crime esse ato, mas nem por isso deixavam de executá-lo. Dentre os pescadores que se destacavam, posso citar Sr. Arivaldo, João do Velho, Senor, que tinha fama de bom mergulhador, Zé do Campo, e Manuel de Fulô. Este, uma vez, foi escarrerado manguezal adentro pelos agentes da Capita­nia dos Portos. Não se emendou. A pesca com bomba era excitante e fácil. E lá estava Manuel de Fulô de novo catando os peixes da superfície. Olhava em to­das as direções para ver se vinha alguém da Marinha e, bum, mergulhava. Lá se ia ele buscar os peixes que não boiavam.
***
Eu tinha nove anos e era doido por refrigerante. Claro, era tão raro tomar que até mesmo quente sorvia-o de bom gosto, e lenta­ment­e, para prolongar o prazer. Ali era raro coisas ge­ladas. Eis porque: primeiro, os moradores não tinham condições de comprar geladeira; segundo, a eletricidade ligava-se às seis horas e desligava-se às dez. Isto é mentira, se bem me recordo desligava-se sempre antes. Uma vez, somente uma vez, exceto nas festas de ano, a luz ficou acesa até de manhãzinha. E isto foi quando seu Caju mor­reu. Seu Caju era o Juiz de Paz; terceiro, pelo já exposto acima, percebe-se que a eletricidade era ge­rada por um motor que alimentava, mal, as trezentas e poucas lâm­padas, contando as dos postes (naquele tempo, ainda de madeira) e as das casas. Assim, se se ligasse uma geladeira, a luz baixava na hora. Mas, sem grande esforço de memória, posso dizer quem tinha geladeira naquele tempo em Barcelos do Sul: seu Caju, o Juiz de Paz, que já morreu nessa história, a sua era a gás e funcionava; meu pai, o Sr. Jocelyn Policarpo da Silva, apelidado Celi, a sua era à eletricidade, e não funcionava; e seu Vavá, dono de um armazém colado à venda de meu pai, na Praça da Matriz, em frente à Igreja. A sua era a gás e trabalhava bem.
Era na Praça da Matriz que eu estava. Tinha algumas moedas e ia tomar um refrige­rante quando, lá em cima, no fim da rua, descendo para a praça, al­gumas pessoas aglomeradas em torno de um homem traziam-no nos braços, em cadeirinha.
Chegaram mais perto.
– Meu Deus! O que terá sido isso? perguntei-me.
– Foi a bomba, alguém respondeu.
– O quê!? Bomba!?
– Onde foi? Como foi? Por que foi? Ele não soltou logo, foi?
Ali estava Raimundo Reis, sentado, parara um pouco de tremer. Eu via com olhos curiosos de menino. Coto­cos, sim, o que eram seus braços agora, só cotocos. Os nervos davam a impressão de que iam pingar, escorrer. No resto do corpo, muitas escoriações. O olho direito ficaria, como ficou, seria­mente danificado, mas os cotocos, meu Deus, jamais esquecerei. Por fim levaram Raimundo Reis para Camamu. De lá ele foi a Salvador. E eu fiquei ali, abobado, repetindo aquele quadro horrível: um ho­mem sentado, olhos esbugalhados e os cotocos com seus nervos pingando. Argh! Foi demais para mim, buliu-me todo por dentro. Mas, o que fazer? Quem procura acha. E, decidido, entrei no armazém de seu Vavá e pedi:
– Seu Vavá, me dê uma gasosa.
Ao que ele prontamente me atendeu. E, já esquecido de tudo, de Raimundo e do mundo, sorvia-a de bom gosto, e lentamente, só para prolongar o prazer.
Raimundo Reis, ironicamente, passou a ser visto por todos do lugar como homem de sorte, pois conseguiu se aposentar por invalidez. Hoje vive feliz com a nova esposa e com o “sigiloso” negócio de explosivos.



Flamarion Silva é autor do volume de contos O rato do capitão (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, 2006 - Coleção Selo Letras da Bahia). Foto "O Poder da Pesca", de joaobambu, retirada do Flickr.