sexta-feira, 12 de setembro de 2008

SIM, AMEMOS A VIDA


Gláucia Lemos

O silêncio sempre me disse coisas. Esta frase não é minha, é de Marcela, a personagem do romance A Metade da Maçã. Mas a mim também o silêncio diz coisas, não só diz, às vezes também pergunta. Hoje ele me perguntou por que fazemos tanta questão de viver? Por que todos (ou a maioria) olhamos a morte com horror, como se não fosse ela a verdadeira finalidade da vida de todos nós. É para ela que caminhamos, desde o primeiro instante do nascimento. Ao longo das vivências, passamos por experiências agradáveis e desagradáveis, mas apenas passamos, não permanecemos nelas, não são nosso ponto de chegada. Elas vão ficando para trás e nós prosseguimos porque teremos que ir a outro destino inevitável. Por que vivemos se teremos que morrer, é a pergunta cuja resposta a nossa vã filosofia não consegue alcançar, e as diversas conclusões a que chegam as religiões não sei se satisfazem plenamente tantas inquirições que pairam em torno dela. O fato é que com a morte e só com ela é que se encerra a repetição de experiências vividas e superadas. No entanto teimamos em olhar para ela com olhos oblíquos, por cima do ombro, e a encará-la como a um fato que só acontecerá a outrem, não a nós nem àqueles aos quais mais amamos.
Na adolescência tive uma colega de escola que nunca olhava para lojas de artigos funerários, voltava o rosto para o lado oposto sempre que passava pela porta de alguma dessas lojas, como se um simples olhar a empurrasse para dentro de uma daquelas urnas ali expostas, já que muitos têm que ganhar o sustento da sua própria vida com a morte alheia. Clarice Lispector, em um dos seus romances, se não me engano, em Um sopro de vida, pergunta: “todos têm que morrer, mas, eu também?”. Talvez por um processo inconsciente de defesa, nos surpreendamos ao admitir que nós também. Eu a vejo com naturalidade, e às vezes penso nela, sem morbidez. Pode ser, este meu comportamento, porque ela entrou na minha vida muito cedo. Eu tinha só três anos quando perdi meu pai, e essa morte nunca mais me abandonou, não como um sentimento doentio, mas com a certeza de que fui injustiçada precocemente. Era muito cedo para que me roubassem alguém tão significativo a meu universo emocional. Por toda a vida isso me entranhou um sentimento de perdedora em relação a afetos, como se perder aquele que mais me amava, me negasse o direito de tornar a ser amada. Tenho em cima do piano uma foto dele, antiga, em preto-e-branco, usando um chapéu daqueles que os homens usavam por aqueles anos. Todos os dias olho para ele e lhe sorrio. Foi um homem amoroso com os seus e generoso com os estranhos. E ele é ainda a maior razão para que me lembre dela de vez em quando.
Entretanto, me causou perplexidade um envelope que recebi há alguns dias, e estava recordando esse fato no silêncio que me provocou estas reflexões. Nada mais nada menos, a carta fazia publicidade de jazigos. Aconselhava clientes em potencial a anteciparem a aquisição do abrigo definitivo para seu repouso eterno. Já viram maior mau-gosto? Sei, todos sabemos, que estamos indo nessa direção, mas, convenhamos, nenhum de nós está com tanta pressa a ponto de antecipar o próprio funeral. Cruz credo! Vá agourar outro! Nós aqui ainda vamos ficar por alguns decênios, ainda vamos escrever e ler muitos livros, comer muito strogonoff com os amigos, reclamar muito da desfaçatez dos políticos, jogar muita conversa fora com as pessoas queridas, e até dançar muito tango argentino, por que não? Que essa megera de vida às vezes é muito má, mas é bonita demais para que a dispensemos tão depressa.


Gláucia Lemos é autora do romance A metade da maçã (Prêmio da Sec. De Cultura do Recife). Foto de josemazcona, retirada do Flickr.